terça-feira, 31 de agosto de 2010

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Aqueles dois




















Ontem em função do cansaço resisti a ler esse conto do Caio, preferi dormir, e hoje logo que acordei o apanhei e guardei na mochila. Depois o apanhei de novo no ônibus e segui viagem lendo-o. Tamanha emoção senti; tantos suspiros poéticos surpreenderam-me a cada passar de palavra aos olhos. Há tempo não lia nada que despertasse esse romantismo adolescente dos suspiros, da levitação, do transportar-se a um mundo mais possível de felicidade. Por isso não poderia deixar de socializá-lo com os amigos e amantes da literatura e do amor que, acima de tudo, rompe qualquer convenção e qualquer conservadorismo. Só posso dizer que amei conviver com as personagens de Aqueles dois. E estou ainda mais apaixonado por qualquer palavra de Caio Fernando Abreu.

LEIAM:



(História de aparente mediocridade e repressão)
Em Memória de Rofran Fernandes


"I announce adhesiveness, I say it shall be limitless,
unloosen il. I say you shall yet find the friend youwere looking for."
Walt Whitman: So Long!



A verdade é que não havia mais ninguém em volta. Meses depois, não no começo, um deles diria que a repartição era como "um deserto de almas". O outro concordou sorrindo, orgulhoso, sabendo-se excluído. E longamente, entre cervejas, trocaram então ácidos comentários sobre as mulheres mal-amadas e vorazes, os papos de futebol, amigo secreto, lista de presente, bookmaker, bicho, endereço de cartomante, clips no relógio de ponto, vezenquando salgadinhos no fim do expediente, champanha nacional em copo de plástico. Num deserto de almas também desertas, uma alma especial reconhece de imediato a outra — talvez por isso, quem sabe? Mas nenhum se perguntou.

Não chegaram a usar palavras como "especial", "diferente" ou qualquer coisa assim. Apesar de, sem efusões, terem se reconhecido no primeiro segundo do primeiro minuto. Acontece porém que não tinham preparo algum para dar nome às emoções, nem mesmo para tentar entendê-las. Não que fossem muito jovens, incultos demais ou mesmo um pouco burros. Raul tinha um ano mais que trinta; Saul, um menos. Mas as diferenças entre eles não se limitavam a esse tempo, a essas letras. Raul vinha de um casamento fracassado, três anos e nenhum filho. Saul, de um noivado tão interminável que terminara um dia, e um curso frustrado de Arquitetura. Talvez por isso, desenhava. Só rostos, com enormes olhos sem íris nem pupilas. Raul ouvia música e, às vezes, de porre, pegava o violão e cantava, principalmente velhos boleros em espanhol. E cinema, os dois gostavam.

Passaram no mesmo concurso para a mesma firma, mas não se encontraram durante os testes. Foram apresentados no primeiro dia de trabalho de cada um. Disseram prazer, Raul, prazer, Saul, depois como é mesmo o seu nome? sorrindo divertidos da coincidência. Mas discretos, porque eram novos na firma e a gente, afinal, nunca sabe onde está pisando. Tentaram afastar-se quase imediatamente, deliberando limitarem-se a um cotidiano oi, tudo bem ou, no máximo, às sextas, um cordial bom fim de semana, então. Mas desde o princípio alguma coisa — fados, astros, sinas, quem saberá? conspirava contra (ou a favor, por que não?) aqueles dois.

Suas mesas ficavam lado a lado. Nove horas diárias, com intervalo de uma para o almoço. E perdidos no meio daquilo que Raul (ou teria sido Saul?) chamaria, meses depois, exatamente de "um deserto de almas", para não sentirem tanto frio, tanta sede, ou simplesmente por serem humanos, sem querer justificá-los — ou, ao contrário, justificando-os plena e profundamente, enfim: que mais restava àqueles dois senão, pouco a pouco, se aproximarem, se conhecerem, se misturarem? Pois foi o que aconteceu. Tão lentamente que mal perceberam.

II

Eram dois moços sozinhos. Raul tinha vindo do norte, Saul tinha vindo do sul. Naquela cidade, todos vinham do norte, do sul, do centro, do leste — e com isso quero dizer que esse detalhe não os tornaria especialmente diferentes. Mas no deserto em volta, todos os outros tinham referenciais, uma mulher, um tio, uma mãe, um amante. Eles não tinham ninguém naquela cidade — de certa forma, também em nenhuma outra —, a não ser a si próprios. Diria também que não tinham nada, mas não seria inteiramente verdadeiro.

Além do violão, Raul tinha um telefone alugado, um toca-discos com rádio e um sabiá na gaiola, chamado Carlos Gardel. Saul, uma televisão colorida com imagem fantasma, cadernos de desenho, vidros de tinta nanquim e um livro com reproduções de Van Gogh. Na parede do quarto de pensão, uma outra reprodução de Van Gogh: aquele quarto com a cadeira de palhinha parecendo torta, a cama estreita, as tábuas do assoalho, colocado na parede em frente à cama. Deitado, Saul tinha às vezes a impressão de que o quadro era um espelho refletindo, quase fotograficamente, o próprio quarto, ausente apenas ele mesmo. Quase sempre, era nessas ocasiões que desenhava.

Eram dois moços bonitos também, todos achavam. As mulheres da repartição, casadas, solteiras, ficaram nervosas quando eles surgiram, tão altos e altivos, comentou, olhos arregalados, uma das secretárias. Ao contrário dos outros homens, alguns até mais jovens, nenhum tinha barriga ou aquela postura desalentada de quem carimba ou datilografa papéis oito horas por dia.

Moreno de barba forte azulando o rosto, Raul era um pouco mais definido, com sua voz de baixo profundo, tão adequada aos boleros amargos que gostava de cantar. Tinham a mesma altura, o mesmo porte, mas Saul parecia um pouco menor, mais frágil, talvez pelos cabelos claros, cheios de caracóis miúdos, olhos assustadiços, azul desmaiado. Eram bonitos juntos, diziam as moças. Um doce de olhar. Sem terem exatamente consciência disso, quando juntos os dois aprumavam ainda mais o porte e, por assim dizer, quase cintilavam, o bonito de dentro de um estimulando o bonito de fora do outro, e vice-versa. Como se houvesse entre aqueles dois, uma estranha e secreta harmonia.

III

Cruzavam-se, silenciosos mas cordiais, junto à garrafa térmica do cafezinho, comentando o tempo ou a chatice do trabalho, depois voltavam às suas mesas. Muito de vez em quando, um pedia um cigarro ao outro, e quase sempre trocavam frases como tanta vontade de parar, mas nunca tentei, ou já tentei tanto, agora desisti. Durou tempo, aquilo. E teria durado muito mais, porque serem assim fechados, quase remotos, era um jeito que traziam de longe. Do norte, do sul.

Até um dia em que Saul chegou atrasado e, respondendo a um vago que que houve, contou que tinha ficado até tarde assistindo a um velho filme na televisão. Por educação, ou cumprindo um ritual, ou apenas para que o outro não se sentisse mal chegando quase às onze, apressado, barba por fazer, Raul deteve os dedos sobre o teclado da máquina e perguntoü: que filme? Infâmia, Saul contou baixo, Audrey Hepburn, Shirley MacLayne, um filme muito antigo, ninguém conhece. Raul olhou-o devagar, e mais atento, como ninguém conhece? eu conheço e gosto muito. Abalado, convidou Saul para um café e, no que restava daquela manhã muito fria de junho, o prédio feio mais que nunca parecendo uma prisão ou uma clínica psiquiátrica, falaram sem parar sobre o filme.

Outros filmes viriam, nos dias seguintes, e tão naturalmente como se de alguma forma fosse inevitável, também vieram histórias pessoais, passados, alguns sonhos, pequenas esperança e sobretudo queixas. Daquela firma, daquela vida, daquele nó, confessaram uma tarde cinza de sexta, apertado no fundo do peito. Durante aquele fim de semana obscuramente desejaram, pela primeira vez, um em sua quitinete, outro na pensão, que o sábado e o domingo caminhassem depressa para dobrar a curva da meia-noite e novamente desaguar na manhã de segunda-feira quando, outra vez, se encontrariam para: um café. Assim foi, e contaram um que tinha bebido além da conta, outro que dormira quase o tempo todo. De muitas coisas falaram aqueles dois nessa manhã, menos da falta que sequer sabiam claramente ter sentido.

Atentas, as moças em volta providenciavam esticadas aos bares depois do expediente, gafieiras, discotecas, festinhas na casa de uma, na casa de outra. A princípio esquivos, acabaram cedendo, mas quase sempre enfiavam-se pelos cantos e sacadas para contar suas histórias intermináveis. Uma noite, Raul pegou o violão e cantou Tú Me Acostumbraste. Nessa mesma festa, Saul bebeu demais e vomitou no banheiro. No caminho até os táxis separados, Raul falou pela primeira vez no casamento desfeito. Passo incerto, Saul contou do noivado antigo. E concordaram, bêbados, que estavam ambos cansados de todas as mulheres do mundo, suas tramas complicadas, suas exigências mesquinhas. Que gostavam de estar assim, agora, sós, donos de suas próprias vidas. Embora, isso não disseram, não soubessem o que fazer com elas.

Dia seguinte, de ressaca, Saul não foi trabalhar nem telefonou. Inquieto, Raul vagou o dia inteiro pelos corredores subitamente desertos, gelados, cantando baixinho Tú Me Acostumbraste, entre inúmeros cafés e meio maço de cigarros a mais que o habitual.

IV

Os fins de semana tornaram-se tão longos que um dia, no meio de um papo qualquer, Raul deu a Saul o número de seu telefone, alguma coisa que você precisar, se ficar doente, a gente nunca sabe. Domingo depois do almoço, Saul telefonou só para saber o que o outro estava fazendo, e visitou-o, e jantaram juntos a comidinha mineira que a empregada deixara pronta sábado. Foi dessa vez que, ácidos e unidos, falaram no tal deserto, nas tais almas. Há quase seis meses se conheciam. Saul deu-se bem com Carlos Gardel, que ensaiou um canto tímido ao cair da noite. Mas quem cantou foi Raul: Perfídia, La Barca e, a pedido de Saul, outra vez, duas vezes, Tú Me Acostumbraste. Saul gostava principalmente daquele pedacinho assim sutil llegaste a mí como una tentación llenando de inquietud mi corazón. Jogaram algumas partidas de buraco e, por volta das nove, Saul se foi.

Na segunda, não trocaram uma palavra sobre o dia anterior. Mas falaram mais que nunca, e muitas vezes foram ao café. As moças em volta espiavam, às vezes cochichando sem que eles percebessem. Nessa semana, pela primeira vez almoçaram juntos na pensão de Saul, que quis subir ao quarto para mostrar os desenhos, visitas proibidas à noite, mas faltavam cinco para as duas e o relógio de ponto era implacável. Saíam e voltavam juntos, desde então, geralmente muito alegres. Pouco tempo depois, com pretexto de assistir a Vagas Estrelas da Ursa na televisão de Saul, Raul entrou escondido na pensão, uma garrafa de conhaque no bolso interno do paletó. Sentados no chão, costas apoiadas na cama estreita, quase não prestaram atenção no filme. Não paravam de falar. Cantarolando Io Che Non Vivo, Raul viu os desenhos, olhando longamente a reprodução de Van Gogh, depois perguntou como Saul conseguia viver naquele quartinho tão pequeno. Parecia sinceramente preocupado. Não é triste? perguntou. Saul sorriu forte: a gente acostuma.

Aos domingos, agora, Saul sempre telefonava. E vinha. Almoçavam ou jantavam, bebiam, fumavam, falavam o tempo todo. Enquanto Raul cantava — vezenquando El Día Que Me Quieras, vezenquando Noche de Ronda —, Saul fazia carinhos lentos na cabecinha de Carlos Gardel, pousado no seu dedo indicador. Às vezes olhavam-se. E sempre sorriam. Uma noite, porque chovia, Saul acabou dormindo no sofá. Dia seguinte, chegaram juntos à repartição, cabelos molhados do chuveiro. As moças não falaram com eles. Os funcionários barrigudos e desalentados trocaram alguns olhares que os dois não saberiam compreender, se percebessem. Mas nada perceberam, nem os olhares nem duas ou três piadas. Quando faltavam dez minutos para as seis, saíram juntos, altos e altivos, para assistir ao último filme de Jane Fonda.

V

Quando começava a primavera, Saul fez aniversário. Porque achava seu amigo muito solitário, ou por outra razão assim, Raul deu a ele a gaiola com Carlos Gardel. No começo do verão, foi a vez de Raul fazer aniversário. E porque estava sem dinheiro, porque seu amigo não tinha nada nas paredes da quitinete, Saul deu a ele a reprodução de Van Gogh. Mas entre esses dois aniversários, aconteceu alguma coisa.

No norte, quando começava dezembro, a mãe de Raul morreu e ele precisou passar uma semana fora. Desorientado, Saul vagava pelos corredores da firma esperando um telefonema que não vinha, tentando em vão concentrar-se nos despachos, processos, protocolos. Á noite, em seu quarto, ligava a televisão gastando tempo em novelas vadias ou desenhando olhos cada vez mais enormes, enquanto acariciava Carlos Gardel. Bebeu bastante, nessa semana. E teve um sonho: caminhava entre as pessoas da repartição, todas de preto, acusadoras. À exceção de Raul, todo de branco, abrindo os braços para ele. Abraçados fortemente, e tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro. Acordou pensando mas ele é que devia estar de luto.

Raul voltou sem luto. Numa sexta de tardezinha, telefonou para a repartição pedindo a Saul que fosse vê-lo. A voz de baixo profundo parecia ainda mais baixa, mais profunda. Saul foi. Raul tinha deixado a barba crescer. Estranhamente, ao invés de parecer mais velho ou mais duro, tinha um rosto quase de menino. Beberam muito nessa noite. Raul falou longamente da mãe — eu podia ter sido mais legal com ela, disse, e não cantou. Quando Saul estava indo embora, começou a chorar. Sem saber ao certo o que fazia, Saul estendeu a mão e, quando percebeu, seus dedos tinham tocado a barba crescida de Raul. Sem tempo para compreenderem, abraçaram-se fortemente. E tão próximos que um podia sentir o cheiro do outro: o de Raul, flor murcha, gaveta fechada; o de Saul, colônia de barba, talco. Durou muito tempo. A mão de Saul tocava a barba de Raul, que passava os dedos pelos caracóis miúdos do cabelo do outro. Não diziam nada. No silêncio era possível ouvir uma torneira pingando longe. Tanto tempo durou que, quando Saul levou a mão ao cinzeiro, o cigarro era apenas uma longa cinza que ele esmagou sem compreender.

Afastaram-se, então. Raul disse qualquer coisa como eu não tenho mais ninguém no mundo, e Saul outra coisa qualquer como você tem a mim agora, e para sempre. Usavam palavras grandes — ninguém, mundo, sempre — e apertavam-se as duas mãos ao mesmo tempo, olhando-se nos olhos injetados de fumo e álcool. Embora fosse sexta e não precisassem ir à repartição na manhã seguinte, Saul despediu-se. Caminhou durante horas pelas ruas desertas, cheias apenas de gatos e putas. Em casa; acariciou Carlos Gardel até que os dois dormissem. Mas um pouco antes, sem saber por quê, começou a chorar sentindo-se só e pobre e feio e infeliz e confuso e abandonado e bêbado e triste, triste, triste. Pensou em ligar para Raul, mas não tinha fichas e era muito tarde.

Depois, chegou o Natal, o Ano-Novo que passaram juntos, recusando convites dos colegas de repartição. Raul deu a Saul uma reprodução do Nascimento de Vênus, que ele colocou na parede exatamente onde estivera o quarto de Van Gogh. Saul deu a Raul um disco chamado Os Grandes Sucessos de Dalva de Oliveira. O que mais ouviram foi Nossas Vidas, prestando atenção no pedacinho que dizia até nossos beijos parecem beijos de quem nunca amou.

Foi na noite de trinta e um, aberta a champanhe na quitinete de Raul, que Saul ergueu a taça e brindou à nossa amizade que nunca nunca vai terminar. Beberam até quase cair. Na hora de deitar, trocando a roupa no banheiro, muito bêbado, Saul falou que ia dormir nu. Raul olhou para ele e disse você tem um corpo bonito. Você também, disse Saul, e baixou os olhos. Deitaram ambos nus, um na cama atrás do guarda-roupa, outro no sofá. Quase a noite inteira, um conseguia ver a brasa acesa do cigarro do outro, furando o escuro feito um demônio de olhos incendiados. Pela manhã, Saul foi embora sem se despedir para que Raul não percebesse suas fundas olheiras.

Quando janeiro começou, quase na época de tirarem férias — e tinham planejado, juntos, quem sabe Parati, Ouro Preto, Porto Seguro — ficaram surpresos naquela manhã em que o chefe de seção os chamou, perto do meio-dia. Fazia muito calor. Suarento, o chefe foi direto ao assunto. Tinha recebido algumas cartas anônimas. Recusou-se a mostrá-las. Pálidos, ouviram expressões como "relação anormal e ostensiva", "desavergonhada aberração", "comportamento doentio", "psicologia deformada", sempre assinadas por Um Atento Guardião da Moral. Saul baixou os olhos desmaiados, mas Raul colocou-se em pé. Parecia muito alto quando, com uma das mãos apoiadas no ombro do amigo e a outra erguendo-se atrevida no ar, conseguiu ainda dizer a palavra nunca, antes que o chefe, entre coisas como a-reputação-de-nossa-firma, declarasse frio: os senhores estão despedidos.

Esvaziaram lentamente cada um a sua gaveta, a sala deserta na hora do almoço, sem se olharem nos olhos. O sol de verão escaldava o tampo de metal das mesas. Raul guardou no grande envelope pardo um par de olhos enormes, sem íris nem pupilas, presente de Saul, que guardou no seu grande envelope pardo, com algumas manchas de café, a letra de Tú Me Acostumbraste, escrita à mão por Raul numa tarde qualquer de agosto. Desceram juntos pelo elevador, em silêncio.

Mas quando saíram pela porta daquele prédio grande e antigo, parecido com uma clínica ou uma penitenciária, vistos de cima pelos colegas todos postos na janela, a camisa branca de um, a azul do outro, estavam ainda mais altos e mais altivos. Demoraram alguns minutos na frente do edifício. Depois apanharam o mesmo táxi, Raul abrindo a porta para que Saul entrasse. Ai-ai, alguém gritou da janela. Mas eles não ouviram. O táxi já tinha dobrado a esquina.

Pelas tardes poeirentas daquele resto de janeiro, quando o sol parecia a gema de um enorme ovo frito no azul sem nuvens no céu, ninguém mais conseguiu trabalhar em paz na repartição. Quase todos ali dentro tinham a nítida sensação de que seriam infelizes para sempre. E foram.


CAIO FERNANDO ABREU

In: Abreu, Caio Fernando. Morangos mofados. 9ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.

terça-feira, 3 de agosto de 2010

Zero Grau de Libra

O sol entrou ontem em Libra. E, porque tudo é ritual, porque fé, quando não se tem, se inventa, porque Libra é a regência máxima de Vênus, o afeto, porque Libra é o outro (quando se olha e se vê o outro, e de alguma forma tenta-se entrar em alguma espécie de harmonia com ele), e principalmente porque Deus, se é que existe, anda distraído demais, resolvi chamar a atenção dele para algumas coisas. Não que isso possa acordá-lo de seu imenso sono divino, enfastiado de humanos, mas para exercitar o ritual e a fé — e para pedir, mesmo em vão, porque pedir não só é bom, mas às vezes é o que se pode fazer quando tudo vai mal.

Neste zero grau de Libra, queria pedir a isso que chamamos Deus um olho bom sobre o planeta Terra, e especialmente sobre a cidade de São Paulo. Um olho quente sobre o mendigo gelado que acabei de ver sob a marquise do cine Majestic; um olho generoso para a noiva radiosa mais acima. Eu queria hoje o olho bom de Deus derramado sobre as loiras oxigenadas, falsíssimas, o olho cúmplice de Deus sobre as jóias douradas, as cores vibrantes. O olho piedoso de Deus para esses casais que, aos fins de semana, comem pizza com fanta e guaranás pelos restaurantes, e mal se olham enquanto falam de coisas como “você acha que eu devia ter dado telefone da Catarina à Eliete?” — e o outro grunhem em resposta.

Deus, põe teu olho amoroso sobre todos os que já tiveram um amor sem nojo nem medo, e de alguma forma insana esperam a volta dele: que os telefones toquem, que as cartas finalmente cheguem. Derrama teu olho amável sobre as criancinhas demônias criadas em edifícios, brincando aos berros em playgrounds de cimento. Ilumina o cotidiano dos funcionários públicos ou daqueles que, como funcionários públicos, cruzam-se em corredores sem ao menos se verem — nesses lugares onde um outro ser humano vai-se tornando aos poucos tão humano quanto uma mesa.

Passeia teu olhar fatigado pela cidade suja, Deus, e pousa devagar tua mão na cabeça daquele que, na noite, liga para o CVV. Olha bem pelo rapaz que, absolutamente só, dez vezes repete Moon Over Bourbon Street, na voz de Sting, e chora. Coloca um spot bem brilhante no caminho das garotas performáticas que para pagar o aluguel dão duro como garçonetes pelos bares. Olha também pela multidão sob a marquise do Mappin, enquanto cai a chuva de granizo, pelo motorista de táxi que confessa não ter mais esperança alguma. Cuida do pintor que queria pintar, mas gasta seu talento pelas redações, pelas agências publicitárias, e joga tua luz no caminho dos escritores que precisam vender barato seu texto — olha por todos aqueles que queriam ser outra coisa qualquer que não a que são, e viver outra que não a que vivem.

Não esquece do rapaz viajando de ônibus com seus teclados para fazer show na Capital, deita teu perdão sobre os grupos de terapia e suas elaborações da vida, sobre as moças desempenhadas em seus pequenos apartamentos na Bela Vista, sobre os homossexuais tontos de amor não dado, sobre as prostitutas seminuas, sobre os travestis da República do Líbano, sobre os porteiros de prédios comendo sua comida fria nas ruas dos Jardins. Sobre o descaramento, a sede e a humildade, sobre todos os que de alguma forma não deram certo (porque, nesse esquema é sujo dar-certo), sobre todos que continuam tentando por razão nenhuma — sobre esses que sobrevivem a cada dia ao naufrágio de uma por uma das ilusões.

Sobre as antas poderosas, ávidas de matar o sonho alheio — Não. Derrama sobre elas teu olhar mais impiedoso. Deus, e afia tua espada. Que no zero grau de Libra, a balança pese exata na medida do aço frio da espada da justiça. Mas para nós, que nos esforçamos tanto e sangramos todo o dia sem desistir, envia teu Sol mais luminoso, esse do zero grau de Libra. Sorri, abençoa nossa amorosa miséria atarantada.



CAIO FERNANDO ABREU
(1948-1996)

ABREU, Caio Fernando. Zero grau de Libra. In: ____. Pequenas epifanias. Porto Alegre: Sulina, 1996. p. 30-32.

"Me dei ao trabalho de digitar esta crônica do Caio Fernando Abreu que acabo de descobrir e que muito me fascinou, por isso quero socializá-la com os amigos e visitantes."

Fábio Pinheiro

sábado, 24 de julho de 2010

Antes do Nome



















Não me importa a palavra, esta corriqueira.
Quero é o esplêndido caos de onde emerge a sintaxe,
os sítios escuros onde nasce o 'de', 'aliás',
o 'o', o 'porém' e o 'que', esta incompreensível
muleta que me apóia.
Quem entender a linguagem entende Deus
cujo Filho é Verbo. Morre quem entender.
A palavra é disfarce de uma coisa mais grave, surda-muda,
foi inventada para ser calada.
Em momentos de graça, infreqüentíssimos,
se poderá apanhá-la: um peixe vivo com a mão.
Puro susto e terror.


ADÉLIA PRADO
Poetisa Mineira

In: Prado, Adélia. Bagagem. 27ª ed. Rio de Janeiro:Record, 2008.

sábado, 17 de julho de 2010

Os Ombros Suportam o Mundo



















Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.
Tempo de absoluta depuração.
Tempo em que não se diz mais: meu amor.
Porque o amor resultou inútil.
E os olhos não choram.
E as mãos tecem apenas o rude trabalho.
E o coração está seco.

Em vão mulheres batem à porta, não abrirás.
Ficaste sozinho, a luz apagou-se,
mas na sombra teus olhos resplandecem enormes.
És todo certeza, já não sabes sofrer.
E nada esperas de teus amigos.

Pouco importa venha a velhice, que é a velhice?
Teu ombros suportam o mundo
e ele não pesa mais que a mão de uma criança.
As guerras, as fomes, as discussões dentro dos edifícios
provam apenas que a vida prossegue
e nem todos se libertaram ainda.
Alguns, achando bárbaro o espetáculo,
prefeririam (os delicados) morrer.
Chegou um tempo em que não adianta morrer.
Chegou um tempo em que a vida é uma ordem.
A vida apenas, sem mistificação.


CARLOS DRUMMOND DE ANDRADE
(1902-1987)

 
Os versos acima foram publicados originalmente no livro "Sentimento do Mundo", Irmãos Pongetti - Rio de Janeiro, 1940. Foram extraídos do livro "Nova Reunião", José Olympio Editora - Rio de Janeiro, 1985, pág. 78.


domingo, 4 de julho de 2010

Rua das Amoras


TEMPORARIAMENTO FORA DE SERVIÇO, RS! 

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Perdoando Deus


Eu ia andando pela Avenida Copacabana e olhava distraída edifícios, nesga de mar, pessoas, sem pensar em nada. Ainda não percebera que na verdade não estava distraída, estava era de uma atenção sem esforço, estava sendo uma coisa muito rara: livre. Via tudo, e à toa. Pouco a pouco é que fui percebendo que estava percebendo as coisas. Minha liberdade então se intensificou um pouco mais, sem deixar de ser liberdade.
Tive então um sentimento de que nunca ouvi falar. Por puro carinho, eu me senti a mãe de Deus, que era a Terra, o mundo. Por puro carinho mesmo, sem nenhuma prepotência ou glória, sem o menor senso de superioridade ou igualdade, eu era por carinho a mãe do que existe. Soube também que se tudo isso "fosse mesmo" o que eu sentia - e não possivelmente um equívoco de sentimento - que Deus sem nenhum orgulho e nenhuma pequenez se deixaria acarinhar, e sem nenhum compromisso comigo. Ser-lhe-ia aceitável a intimidade com que eu fazia carinho. O sentimento era novo para mim, mas muito certo, e não ocorrera antes apenas porque não tinha podido ser. Sei que se ama ao que é Deus. Com amor grave, amor solene, respeito, medo e reverência. Mas nunca tinham me falado de carinho maternal por Ele. E assim como meu carinho por um filho não o reduz, até o alarga, assim ser mãe do mundo era o meu amor apenas livre.
E foi quando quase pisei num enorme rato morto. Em menos de um segundo estava eu eriçada pelo terror de viver, em menos de um segundo estilhaçava-me toda em pânico, e controlava como podia o meu mais profundo grito. Quase correndo de medo, cega entre as pessoas, terminei no outro quarteirão encostada a um poste, cerrando violentamente os olhos, que não queriam mais ver. Mas a imagem colava-se às pálpebras: um grande rato ruivo, de cauda enorme, com os pés esmagados, e morto, quieto, ruivo. O meu medo desmesurado de ratos.
Toda trêmula, consegui continuar a viver. Toda perplexa continuei a andar, com a boca infantilizada pela surpresa. Tentei cortar a conexão entre os dois fatos: o que eu sentira minutos antes e o rato. Mas era inútil. Pelo menos a contigüidade ligava-os. Os dois fatos tinham ilogicamente um nexo. Espantava-me que um rato tivesse sido o meu contraponto. E a revolta de súbito me tomou: então não podia eu me entregar desprevenida ao amor? De que estava Deus querendo me lembrar? Não sou pessoa que precise ser lembrada de que dentro de tudo há o sangue. Não só não esqueço o sangue de dentro como eu o admiro e o quero, sou demais o sangue para esquecer o sangue, e para mim a palavra espiritual não tem sentido, e nem a palavra terrena tem sentido. Não era preciso ter jogado na minha cara tão nua um rato. Não naquele instante. Bem poderia ter sido levado em conta o pavor que desde pequena me alucina e persegue, os ratos já riram de mim, no passado do mundo os ratos já me devoraram com pressa e raiva. Então era assim? Eu andando pelo mundo sem pedir nada, sem precisar de nada, amando de puro amor inocente, e Deus a me mostrar o seu rato? A grosseria de Deus me feria e insultava-me. Deus era bruto. Andando com o coração fechado, minha decepção era tão inconsolável como só em criança fui decepcionada. Continuei andando, procurava esquecer. Mas só me ocorria a vingança. Mas que vingança poderia eu contra um Deus Todo-Poderoso, contra um Deus que até com um rato esmagado poderia me esmagar? Minha vulnerabilidade de criatura só. Na minha vontade de vingança nem ao menos eu podia encará-lo, pois eu não sabia onde é que Ele mais estava, qual seria a coisa onde Ele mais estava e que eu, olhando com raiva essa coisa, eu o visse? no rato? naquela janela? nas pedras do chão? Em mim é que Ele não estava mais. Em mim é que eu não o via mais.
Então a vingança dos fracos me ocorreu: ah, é assim? Pois então não guardarei segredo, e vou contar. Sei que é ignóbil ter entrado na intimidade de Alguém, e depois contar os segredos, mas vou contar - não conte, só por carinho não conte, guarde para você mesma as vergonhas Dele - mas vou contar, sim, vou espalhar isso que me aconteceu, dessa vez não vai ficar por isso mesmo, vou contar o que Ele fez, vou estragar a Sua reputação.
... mas quem sabe, foi porque o mundo também é rato, e eu tinha pensado que já estava pronta para o rato também. Porque eu me imaginava mais forte. Porque eu fazia do amor um cálculo matemático errado: pensava que, somando as compreensões, eu amava. Não sabia que, somando as incompreensões, é que se ama verdadeiramente. Porque eu, só por ter tido carinho, pensei que amar é fácil. É porque eu não quis o amor solene, sem compreender que a solenidade ritualiza a incompreensão e a transforma em oferenda. E é também porque sempre fui de brigar muito, meu modo é brigando. É porque sempre tento chegar pelo meu modo. É porque ainda não sei ceder. É porque no fundo eu quero amar o que eu amaria - e não o que é. É porque ainda não sou eu mesma, e então o castigo é amar um mundo que não é ele. É também porque eu me ofendo à toa. É porque talvez eu precise que me digam com brutalidade, pois sou muito teimosa. É porque sou muito possessiva e então me foi perguntado com alguma ironia se eu também queria o rato para mim. É porque só poderei ser mãe das coisas quando puder pegar um rato na mão. Sei que nunca poderei pegar num rato sem morrer de minha pior morte. Então, pois, que eu use o magnificat que entoa às cegas sobre o que não se sabe nem vê. E que eu use o formalismo que me afasta. Porque o formalismo não tem ferido a minha simplicidade, e sim o meu orgulho, pois é pelo orgulho de ter nascido que me sinto tão íntima do mundo, mas este mundo que eu ainda extraí de mim de um grito mudo. Porque o rato existe tanto quanto eu, e talvez nem eu nem o rato sejamos para ser vistos por nós mesmos, a distância nos iguala. Talvez eu tenha que aceitar antes de mais nada esta minha natureza que quer a morte de um rato. Talvez eu me ache delicada demais apenas porque não cometi os meus crimes. Só porque contive os meus crimes, eu me acho de amor inocente. Talvez eu não possa olhar o rato enquanto não olhar sem lividez esta minha alma que é apenas contida. Talvez eu tenha que chamar de "mundo" esse meu modo de ser um pouco de tudo. Como posso amar a grandeza do mundo se não posso amar o tamanho de minha natureza? Enquanto eu imaginar que "Deus" é bom só porque eu sou ruim, não estarei amando a nada: será apenas o meu modo de me acusar. Eu, que sem nem ao menos ter me percorrido toda, já escolhi amar o meu contrário, e ao meu contrário quero chamar de Deus. Eu, que jamais me habituarei a mim, estava querendo que o mundo não me escandalizasse. Porque eu, que de mim só consegui foi me submeter a mim mesma, pois sou tão mais inexorável do que eu, eu estava querendo me compensar de mim mesma com uma terra menos violenta que eu. Porque enquanto eu amar a um Deus só porque não me quero, serei um dado marcado, e o jogo de minha vida maior não se fará. Enquanto eu inventar Deus, Ele não existe.
LISPECTOR, Clarice. Perdoando Deus. In: Felicidade Clandestina. Rio de Janeiro: Rocco, 1998.


sábado, 19 de junho de 2010

Estrelas











A pé meu olhar nada se vai ao chão,
são tantos os tropeços,
porque no alto encontro
o mesmo céu estrelado
de um outubro passado.

As estrelas piscam sem parar
como quem dá gargalhadas.
Parecem rir de mim
ao lembrar que tu foste
numa noite de estrelas assim.


Ah Estrelas malvadas! Por que hoje?
Parecem querer provocar-me
muito além deste 12 de junho.
Eis que provocam, Estrelas,
um caminhar de tropeços
rumo ao abismo.

E sinto que não tenho a quem reclamar,
pois há muito tempo de Deus desacreditei.
E eis que assim tão tomado de fúria
só posso desejar a vós, Estrelas,
a morte há milhões de anos predestinada.

A mesma morte que a mim colocaste
como pedra de tropeço no caminho
e premeditaste nesse céu estrelado,
maldita lembrança de um outubro passado.

[Resquícios
de um doze
de junho.]


Fábio Pinheiro


"...quando as primeiras estrelas
no céu aparecem a piscar
sei que estao rindo de mim
por ainda esperar
o amor que a noite levou
pra tão longe de mim
e foi numa noite
de estrelas assim."

[Maysa]
da canção "Rindo de mim".

sábado, 5 de junho de 2010

Resquícios da pós-morte






    

Fábio Pinheiro

em 05/06/10

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Despojamento


Eliminei o excesso de paisagem
simplifiquei toda a decoração
retirei quadros flores ornamentos
apaguei velas copos guardanapos e a música
bani a inutilidade do discurso
na mesa de madeira nua
apenas dois pratos
brancos sem talheres
o banquete será a tua presença.





Ivan Barroso




"estou à busca de palavra
que diga o que senti ao ler
esse poema." 


domingo, 30 de maio de 2010

Medo de altura



medo de altura:

medo de quem nunca voou
medo de quem não se encanta por avião
medo de quem não sobe escadas não
medo de quem tem os pés no chão
medo de quem não empina pipa não
medo de quem nunca soltou balão
medo de quem não beira lajes não
medo de quem teme até o sonho e a ilusão
pois é contra qualquer sensação
que signifique tirar os pés do chão.




[pequenos pequenas só assim me sinto mais próximo de vocês.
espero estar perto de falar a mesma língua, espero causar alguma alegria, mesmo que pequena.]



Fábio Pinheiro

sábado, 29 de maio de 2010

perto dos vinte e oito


perto dos vinte e oito sinto-me perto dos oito apenas na cabeça o carrinho estrela o chocolate top a  bola da vez a roupinha mauricinha manozinha réleszinha a menininha o menininho cadentes o pedido de estrela o terreno baldio. o córrego da vila o rio do livro o preto o branco da vida o colorido da tv do livro o verde das mangas roubadas o branco do sal o amarelo o vermelho da manga pouco comprada os insetos nos pés os bichos da imaginação as idéias pequenas do mundo grande as palavrinhas nunca faladas e então os palavrões da boca suja de café de pão chocolate molho de macarrão o sangue esparramado no chão os olhos guiados pela planície da tele visão a vida real a ficção o passado [de família gostos porradas sermões de escola espaços loiras de banheiro rejeições de polícia brinquedos balas repressões] e o  presente elencado de coisas da verdade de tudo que um dia foi e daqui a algum tempo continuará, talvez, sendo apenas ilusão.


[sei de que preciso
suspeito daquilo
que possa ser utopia
sei da ilusão sei do teor de
tudo o que me dá a emoção
sei logo sei da utopia
e então decido os passos
que dou na vida de cada chão.]


[poesia vaga
capturada no ar
de sábado
dia de expectativa
tarde de reflexão.]


[idade vai
ida de vai idade
vai idade. vaidade.]


Fábio Pinheiro


quinta-feira, 27 de maio de 2010


Um dos meus lugares preferidos tornou-se o menos frequentado; concluo que a vida nos dá, mas também nos toma tanta coisa importante; o tempo que temos se perde na burocracia das manhãs, das tardes, no cansaço das noites, na mudez das primeiras horas, na urgência de pela manhã de novo cansado partir. Lembrei da noite passada, cansado adormeci sem escutar nenhum chamado, acordei preguiçoso, guardei a máquina que comprei para junto comigo escrever outra história. Parece que ela de nada me serve, parece que eu de nada a sirvo, vivemos de pequenos encontros, poucas palavras e indiferença tamanha. Até parece aquele brinquedo, sonho de vida! Alegria avessa! Monotonia crescente!
Agora as palavras me faltam, então rio! Bebo! Durmo como se dormir fosse a única coisa pra se fazer! Enquanto durmo, tantos beijos enfeitam as ruas, tantos corpos se enroscam em lençóis de qualquer ar, tantas risadas validam a vida sem graça, tanta gente lança mão da vida sem medida alguma, arriscam! Enquanto eu apenas a sigo à risca!

De volta ao jardim, vejo abandono, flor seca; meu tempo de novo curto e minha poesia perdida ...
... quem sabe numa dessas suas mãos, também perdidas, a tem. quem sabe com ela você não vem. quem sabe... quem sabe, quem sabe. quem sabe?



Fábio Pinheiro 

sábado, 8 de maio de 2010

Para sempre












Por que Deus permite
que as mães vão-se embora?
Mãe não tem limite,
é tempo sem hora,
luz que não apaga
quando sopra o vento
e chuva desaba,
veludo escondido
na pele enrugada,
água pura, ar puro,
puro pensamento.


Morrer acontece
com o que é breve e passa
sem deixar vestígio.
Mãe, na sua graça,
é eternidade.
Por que Deus se lembra
- mistério profundo -
de tirá-la um dia?
Fosse eu Rei do Mundo,
baixava uma lei:
Mãe não morre nunca,
mãe ficará sempre
junto de seu filho
e ele, velho embora,
será pequenino
feito grão de milho.
 
Carlos Drummond de Andrade

(1902-1988)

devaneios


soltamos a voz
e todo pensamento avesso
ao que há de mais íntimo em cada eu
a mágoa desponta
e enquanto dura a dor
a voz calamos


além de nós – logo ali – está o amor
será lá o horizonte?


... e ela lança sobre minha face um véu
esconde-a
como num ato de negação do meu próprio "eu"
eu a desvelo sem respostas ...











domingo, 2 de maio de 2010



















tudo que agora escrevo
escrevo ciente de que
nesse momento
a cama me espera
as horas de agora me abandonam
e não demora muito
me entregam às mãos de um ganhar pão duro

eu o amacio
na saliva
e no pensamento ... 
no pensamento eu adoço
todo alimento de vida amarga

será isso a paciência da espera
a conformidade do pouco querer
ou um agir malandro?

sexta-feira, 16 de abril de 2010

Aventurado João












Pela aventura tentado
João sai em busca de quadrados
pelos velhos telhados tombados
daqui pra lá de lá pra cá
e pum:
em busca de sua maior paixão
João acaba no chão de ossos quebrados.



           Com carinho e ânsia de amor
àquela que da vida 
como dádiva espero.



Fábio Pinheiro

terça-feira, 23 de março de 2010

A gente se acostuma. Mas não devia.



A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.


Marina Colasanti



Nesse texto, Marina Colasanti, como em tantos outros textos de sua autoria, desvela comportamentos e ações humanas de todo dia, coisas que fazemos sem nenhuma reflexão. Aqui ela, a meu ver, traz uma profunda reflexão do quanto nos alienamos ao sistema capitalista  e o adotamos a partir de modos individualistas, sem nem relutar a isso, apenas nos acostumamos à vida como ela é, sem nenhum questionamento ou intenção de mudá-la.


Texto publicado no livro "Eu sei, mas não devia", Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pag. 09.


Leiam também E por falar em amor, Ed. Rocco,1986. 

domingo, 14 de março de 2010

poema indigente



quisera a imagem perfeita ao sentimento escrito,
quisera ainda aquela que dissesse o aqui não se escreve, o que aqui é vago, o que aqui não se traduz.








como uma folha

depois de tanta bobagem escrita
longe atirada
depois de tanto tempo verde
agora caída largada
velha sem nexo amarelada
ao vento arrastada
por ele atravessada

depois de tanto erro
rasgada cancelada
depois de tanto tempo verde
agora sem ácido alaranjada
sem defesa
imune
no chão esquecida pisada

estou como uma folha
pela tinta, um dia escrita, agora anulada
pelas mãos devassas, um dia apalpada, agora despedaçada
pelo resto de pólvora, um dia aquecida, agora queimada
pelos pés rudes, um dia tateada, agora destroçada esmagada
pelo vento imponente, um dia beijada, agora distanciada
pelo tempo imbatível, um dia presenteada, agora página preterida [acabada
pela terra negada
sem branco sem verde
apenas pasma e amarelada.






coberto de sentimento amanhecido suado sem rosto lavado
em tudo marcado.







14/03/10

terça-feira, 2 de março de 2010

inventividade



de alguém invento para outro alguém invento.
 na inventividade do amor escondido da verdade.



...,

te amo. E não só por hoje nem só por amanhã, te amo por uma ¹eternidade de tempo com anseio de cristalizar no amor uma infinidade de horas sem nenhuma ocupação maior que amar, assim sem pressa, assim preguiçoso, assim mimado de todo amor que de ti chove; chove em mim, terra seca já assim dependente disso que não é mal, é bem necessário para se ter nesse quintal de vida pé de felicidade! Isso que é vida! Nas noites dormir, nas manhãs acordar perto do seu corpo e no entardecer, mesmo distante, estar perto de seu espírito acolhedor e amável.Tão acolhedor quanto a sensualidade de seu corpo, tão dono do meu, tão conhecedor de tudo que eu não resisto, tão  misto de tudo que acolhe o espírito ao mesmo tempo que abranda  o fogo aceso no corpo sem jamais apagá-lo, apenas o sacia sem esgotar possibilidades de novos incêndios por todo o ser espiritual, por todo o ser material, por todo o ser espacial à espera de habitação.





assim sem esperar,

01/03/10



                talvez invente o amor em cartas que só querem existir no mundo onde o sentimento inexiste na correspondência


   ¹ Apenas um eu que faz uso de licença poética
para dizer o que seu coração manda.  

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Ali





ali

ali
se

se alice
ali se visse
quanto alice viu
e não disse

se ali
ali se dissesse
quanta palavra
veio e não desce

ali
bem ali
dentro da alice
só alice
com alice
ali se parece



Paulo Leminski
(1944-1989)
poeta curitibano




Poema no qual Leminski brinca com o nome da poetisa e companheira Alice Ruiz.




Quando  leio Paulo Leminski
me dá vontade de escrever
mas não qualquer coisa
e sim
coisas indizíveis
que só a poesia pode dizer
coisas
que a gente não consegue esquecer
que no tempo permanecem sem nunca envelhecer.

me dá vontade de ser poeta 
do mesmo jeito que Leminski
soube ser.

(Fábio Pinheiro)


quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

poema ainda sem nome



a alma então se acalma
a palavra respira
e pacientemente constrói poesia
sobre a minha ira.




Fábio Pinheiro

09/02/10

sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

bio



bio,
imprevisível como o mar
ou brando como o rio?



Fábio Pinheiro

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

Dize:



Dize:

O vento do meu espírito

soprou sobre a vida.

E tudo que era efêmero

Se desfez.

E ficaste só tu, que és eterno...



Cecília Meireles

(1901-1964)



Eu amo esse poema. É bonito de ver como se consegue coisas tão profundas, tiradas da alma de uma maneira que, peculiarmente, todos nós as sentimos mas nem todos conseguimos dizer tão pouco e ser imenso como Cecília Meireles é neste poema. É tão bonito de ver que os versos além de nos ganhar os olhos, alcançam a boca e provocam a voz, ambas querem uma única coisa: saborear as palavras de Cecília como a uma fruta de beleza inigualável e sabor único.

O ator Paulo Autran recitou divinamente um dos poemas mais bonitos da grande Cecília. Vale a pena assistir ao vídeo e escutar. Afinal poesia não pode ser apenas lida (com os olhos), tem que ser salivada, comida, extravasada.


quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Vestida de voz





[Fábio Pinheiro]


Com carinho à voz Bruna Caram
em 03/02/10
Assistam ao vídeo da Bruna Caram, no Canja do IG, numa interpretação de uma canção do Caetano Veloso chamada Gatas Extraordinárias. Já gravada pela maravilhosa Cássia Eller e pelo próprio Caetano. Confiram!

domingo, 31 de janeiro de 2010

quinta-feira, 28 de janeiro de 2010

Versos de Orgulho




O mundo quer-me mal porque ninguém
Tem asas como eu tenho!Porque Deus
Me fez nascer Princesa entre plebeus
Numa torre de orgulho e de desdém.

Porque o meu Reino fica para além …
Porque trago no olhar os vastos céus
E os oiros e clarões são todos meus !
Porque eu sou Eu e porque Eu sou Alguém !

O mundo ? O que é o mundo, ó meu Amor ?
__O jardim dos meus versos todo em flor…
A seara dos teus beijos, pão bendito…

Meus êxtases, meus sonhos, meus cansaços…
__São os teus braços dentro dos meus braços,
Via Láctea fechando o Infinito.



Florbela Espanca (1894-1930) - Charneca em Flor
Poetisa Portuguesa



Florbela Espanca é para mim uma das maiores poetisas de todos os tempos. Fico bobo de ver como ela conseguia alcançar o infinito dentro de medidas certas; os belos sonetos. Foi uma mulher a frente de seu tempo; a poesia, além da própria maneira de viver, era a sua arma e expressão. A partir de seus poemas pode-se contemplar visões de mundo em prol da emancipação feminina e desmistificação do amor.

Versos de orgulho
, dentre outros, é um dos meus preferidos poemas. Deixo aqui um vídeo no qual o Miguel Falabella o recita.



quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Do tempo que chover era poético!




Chove



A chuva cai.
Os telhados estão molhados,
Os pingos escorrem pelas vidraças.
O céu está branco,
O tempo está novo,
A cidade lavada.
A tarde entardece,
Sem o ciciar das cigarras,
Sem o jubilar dos pássaros,
Sem o sol, sem o céu.
Chove.
A chuva chove molhada,
No teto dos guarda-chuvas.
Chove.
A chuva chove ligeira,
Nos nossos olhos e molha.
O vento venta ventando,
Nos vidros que se embalançam,
Nas plantas que se desdobram.
Chove nas praias desertas,
Chove no mar que está cinza,
Chove no asfalto negro,
Chove nos corações.
Chove em cada alma,
Em cada refúgio chove;
E quando me olhaste em mim
Com olhos que me seguiam,
E enquanto a chuva caía
No meu coração chovia
A chuva do teu olhar.


Ana Cristina César (1952-1983)

em Nov/1965



CÉSAR, Ana Cristina. Inéditos e Dispersos. São Paulo: Ática, 1998. p. 26.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Piegas






em 05/12/09


O poema não segue a formatação original, pois ainda não descobri no blogger ferramentas que possibilite a preservação da autenticidade de formato poético.

Assista ao vídeo de declamação do poema "Cartas de amor" (Fernando Pessoa) por Maria Bethânia.