terça-feira, 23 de março de 2010

A gente se acostuma. Mas não devia.



A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora. E, porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora. A tomar o café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá para almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado. A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a abrir o jornal e a ler sobre a guerra. E, aceitando a guerra, aceita os mortos e que haja números para os mortos. E, aceitando os números, aceita não acreditar nas negociações de paz. E, não acreditando nas negociações de paz, aceita ler todo dia da guerra, dos números, da longa duração.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir. A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta. A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e o de que necessita. E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar. E a ganhar menos do que precisa. E a fazer fila para pagar. E a pagar mais do que as coisas valem. E a saber que cada vez pagar mais. E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma a andar na rua e ver cartazes. A abrir as revistas e ver anúncios. A ligar a televisão e assistir a comerciais. A ir ao cinema e engolir publicidade. A ser instigado, conduzido, desnorteado, lançado na infindável catarata dos produtos.
A gente se acostuma à poluição. Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. À luz artificial de ligeiro tremor. Ao choque que os olhos levam na luz natural. Às bactérias da água potável. À contaminação da água do mar. À lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, a não ter galo de madrugada, a temer a hidrofobia dos cães, a não colher fruta no pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer. Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá. Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço. Se a praia está contaminada, a gente molha só os pés e sua no resto do corpo. Se o trabalho está duro, a gente se consola pensando no fim de semana. E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para esquivar-se de faca e baioneta, para poupar o peito. A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto acostumar, se perde de si mesma.


Marina Colasanti



Nesse texto, Marina Colasanti, como em tantos outros textos de sua autoria, desvela comportamentos e ações humanas de todo dia, coisas que fazemos sem nenhuma reflexão. Aqui ela, a meu ver, traz uma profunda reflexão do quanto nos alienamos ao sistema capitalista  e o adotamos a partir de modos individualistas, sem nem relutar a isso, apenas nos acostumamos à vida como ela é, sem nenhum questionamento ou intenção de mudá-la.


Texto publicado no livro "Eu sei, mas não devia", Ed. Rocco - Rio de Janeiro, 1996, pag. 09.


Leiam também E por falar em amor, Ed. Rocco,1986. 

domingo, 14 de março de 2010

poema indigente



quisera a imagem perfeita ao sentimento escrito,
quisera ainda aquela que dissesse o aqui não se escreve, o que aqui é vago, o que aqui não se traduz.








como uma folha

depois de tanta bobagem escrita
longe atirada
depois de tanto tempo verde
agora caída largada
velha sem nexo amarelada
ao vento arrastada
por ele atravessada

depois de tanto erro
rasgada cancelada
depois de tanto tempo verde
agora sem ácido alaranjada
sem defesa
imune
no chão esquecida pisada

estou como uma folha
pela tinta, um dia escrita, agora anulada
pelas mãos devassas, um dia apalpada, agora despedaçada
pelo resto de pólvora, um dia aquecida, agora queimada
pelos pés rudes, um dia tateada, agora destroçada esmagada
pelo vento imponente, um dia beijada, agora distanciada
pelo tempo imbatível, um dia presenteada, agora página preterida [acabada
pela terra negada
sem branco sem verde
apenas pasma e amarelada.






coberto de sentimento amanhecido suado sem rosto lavado
em tudo marcado.







14/03/10

terça-feira, 2 de março de 2010

inventividade



de alguém invento para outro alguém invento.
 na inventividade do amor escondido da verdade.



...,

te amo. E não só por hoje nem só por amanhã, te amo por uma ¹eternidade de tempo com anseio de cristalizar no amor uma infinidade de horas sem nenhuma ocupação maior que amar, assim sem pressa, assim preguiçoso, assim mimado de todo amor que de ti chove; chove em mim, terra seca já assim dependente disso que não é mal, é bem necessário para se ter nesse quintal de vida pé de felicidade! Isso que é vida! Nas noites dormir, nas manhãs acordar perto do seu corpo e no entardecer, mesmo distante, estar perto de seu espírito acolhedor e amável.Tão acolhedor quanto a sensualidade de seu corpo, tão dono do meu, tão conhecedor de tudo que eu não resisto, tão  misto de tudo que acolhe o espírito ao mesmo tempo que abranda  o fogo aceso no corpo sem jamais apagá-lo, apenas o sacia sem esgotar possibilidades de novos incêndios por todo o ser espiritual, por todo o ser material, por todo o ser espacial à espera de habitação.





assim sem esperar,

01/03/10



                talvez invente o amor em cartas que só querem existir no mundo onde o sentimento inexiste na correspondência


   ¹ Apenas um eu que faz uso de licença poética
para dizer o que seu coração manda.